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Tradições e mitos
do Rio Grande

 

Seguindo a trilha altamente valorizada no Rio Grande do Sul de reconstituir literariamente os fundamentos da cultura regional, Barbosa Lessa toma a vertente mitológica como eixo do seu trabalho. Folclorista, historiador e conhecedor da música da região, o autor vem se dedicando cada vez mais ao estudo e preservação das tradições gaúchas.

Há algumas semanas ele esteve em Salvador participando de um congresso tradicionalista gaúcho (?!). Por estranho que possa parecer, a terra dos orixás sediou um congresso desta natureza, mais difundido entre os muitos rio-grandenses do sul aqui residentes.

Rodeio dos ventos, de Barbosa Lessa, foi pensado como uma síntese fantástica da formação do Rio Grande do Sul. Tal proposta permitiu ao autor unir história e mito sob as luzes da ficção, dando ao livro mais poder de encantamento. Para isso o autor apresenta, já de partida, a exigência básica: o domínio de um texto agradável, claro e bem escrito. Ele transpõe para o silêncio da escrita o poder de entretenimento do relato oral, sem deixar no papel os cacoetes e marcas desta transposição, normalmente carregados pelos amadores. Neste sentido, o autor de Rodeio dos ventos é um profissional da escrita. Ele recria artisticamente, através do código ortográfico, a simplicidade da fala coloquial, sem que a gente perceba esta recriação, e imagine que está ouvindo um velho contador de histórias.

É este velho contador de histórias que perpassa a escrita de Barbosa Lessa, que assegura o prazer do leitor. É ele ainda, reconstituído graças à condição do autor de estudioso da cultura popular, que nos coloca diante de um texto tecido com saber, engenho e arte. Barbosa Lessa escreve com a naturalidade de quem fala, permitindo ao leitor o repouso de quem ouve intermináveis histórias orais.

Se, por um lado, este mérito estabelece de imediato um vínculo entre o leitor e o livro, por outro lado, o amontoado de escrituras de natureza diversa prejudica o trajeto da obra.

Classificado como um livro de contos e escrito como uma obra literária, ficcional, Rodeio dos ventos é, na verdade, um conjunto de textos de natureza diversa. O leitor sai de um conto e, sem aviso prévio ou indenização da fantasia, é empurrado para um estudo de tradições aqui ou para um capítulo de história regional adiante.

Tal mistura de estilos de escrita — a criação do ficcionista, o relato do historiador, a crônica do Folclorista — cria um desconforto no leitor. Pena que de posse de um material tão rico, e senhor de uma escrita tão cativante, Barbosa Lesse não tenha trabalhado um pouco mais para fazer do seu livro aquilo que os editores dizem que ele é: um clássico da literatura do Rio Grande do Sul.

Desconhecedor do universo das tradições gaúchas não tenho autoridade para negar ou atribuir ao livro a condição de clássico da sua cultura, embora concorde com tal vislumbre da editora Mercado Aberto. Mas, seguramente, existe uma distância entre uma obra fundamental da historiografia ou dos estudos culturais da região e uma obra literária clássica.

O que falta ao livro de Barbosa Lessa é precisamente esta sua opção pelo universo ficcional da literatura. O autor fica dividido entre aproveitar relatos, comentários e observações de um estudioso da tradição e entre dar lugar ao narrador da ficção.

A sensação deixada no leitor é a de que há muito material para ser ordenado no volume, muito diamante bruto precisando ser lapidado. Com isso não quero dizer que um escritor não possa inserir no universo ficcional conceitos e questões resultantes das suas pesquisas. Mas esta inserção de elementos presididos pela lógica requer uma forte dosagem de fantasia.

Lembremos da clássica receita dos escritores do Renascimento: onde há muita emoção é preciso que haja muita razão, para permitir o equilíbrio. Aqui, no texto de Rodeio dos ventos, onde há muita informação e muita pesquisa, é necessário que haja muita dose de imaginação criadora, de criação de peripécias friccionais, para que haja equilíbrio e arte.

Exemplo? Está fazendo sucesso no mundo inteiro o livro do norueguês Jostein Gaarder O mundo de Sofia. O ex-professor de filosofia do ensino secundário resolveu fazer uma síntese didática da história da filosofia, desde os pré-socráticos até o existencialismo de Sartre. Como então transformar este manual de filosofia de mais de trezentas páginas numa obra literária? Umas outras duzentas e tantas páginas de pura ficção conseguem ordenar esta material e submetê-lo a uma forma literária.

Como dizem que um exemplo prático vale por mil argumentos teóricos, permitam aqui o exemplo, embora ele tenha nos afastado do nosso objeto: o livro Rodeio dos ventos. Mas procuremos o fio da meada para voltar a ele, sem interromper o fluxo da escrita.

O que falta ao livro de Barbosa Lessa é precisamente esta sua opção pelo universo ficcional da literatura, dizíamos, a decisão de submeter a ordenação do material à lógica da ficção. Na verdade, ele já percorreu quase todo o caminho até a meta de chegada. Há nos seus textos uma notável unidade, quanto à linguagem. Sua escrita é leve e coloquial, quer quando se envereda pelo mundo da ficção, quer quando argumenta e desenvolve pontos de vista.

Ele escreve seus artigos de história regional com tal propriedade, com tal identificação entre o objeto enfocado e a disciplina que o enfoca, que o leitor se convence de que está lendo uma crônica de acontecimentos destinada a fazer o tempo passar. Ora, o que falta então é um pouco mais de disciplina e trabalho para descobrir no universo desta mesma linguagem os ganchos capazes de fundir ficção e realidade num mesmo tecido.

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Tradições e mitos do Rio Grande. Artigo crítico sobre o livro Rodeio dos ventos, de Barbosa Lessa. Contos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, 292 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 29 jan. 96, p. 7.




































 
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