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SUSSURROS DO SEXO CALADO: TUMULTO E SILÊNCIO DO FEMININO
NO SIMBOLISMO BAIANO

Cid Seixas

 

Tanto no século XIX quanto nos primeiros anos do século XX, período que interessa ao foco deste texto, a voz da mulher era sufocada pelos grossos pigarros do macho, com rimas e metros de poemas troncudos. Quando não por vultosos acessos de tosse que punham a casa em alvoroço e demarcavam os lugares sociais.

Na Bahia, onde neo-românticos e parnasianos pousavam de simbolistas, o movimento foi constituído por vozes encorpadas e viris. Estética literária voltada para o sutil, o Simbolismo baiano não teve uma única mulher incluída entre os seus poetas. Enquanto os homens aderiam ou se opunham às publicações que representavam tendências literárias em voga, marcando uma hipotética filiação artística, a criação literária das mulheres ficava à margem deste processo de inserção intelectual. Mesmo o leitor desatento às guerras do gênero percebe, entre as mulheres, escritoras que se impõem para além das diferenças, cujo domínio do verso e da emoção constrói a essência da poesia. Uma delas é Emília Leitão Guerra, nascida em 1883.

Se no Rio Grande do Norte, Auta de Souza – nordestina, interiorana, tísica, órfã e sozinha no mundo, nascida sete anos antes de Emília Leitão Guerra — conseguiu fazer com que versos escritos por uma mulher ultrapassassem o território específico das publicações femininas e constituíssem objeto de estudos literários por nomes que vão de Olavo Bilac a Alceu Amoroso Lima, o mesmo não ocorreu com nenhuma poeta baiana. Se Auta de Souza tem lugar de destaque em muitas histórias da Literatura Brasileira (na de Massaud Moisés, por exemplo, ela ocupa seis páginas), as baianas mais conhecidas entre nós nem sequer são citados. Amélia Rodrigues deu nome a uma cidade, mas não teve a glória de ser estudada com igual interesse fora das investigações de gênero.

Convém dizer que as observações aqui reunidas sob o título “Sussurros do sexo calado: Tumulto e silêncio do feminino no simbolismo baiano” não é um trabalho de gênero, se assim forem compreendidos aqueles que falam de um lugar determinado e específico. É mais uma reflexão sobre a literatura, pretendendo discutir o lugar de uma mulher na literatura; não por ser mulher, mas por ser poeta. Reflexão feita por um homem com todos os vícios e comodidades que a cultura reserva ao macho. E com as atuais angústias de identidade, diante das restrições e cerceamentos a velhos princípios e hábitos herdados que, ao longo da história do Homem, aderiram e se confundiram com a própria constituição do masculino.

A fratura, a perda de identidade do homem diante de novas configurações da realidade e consequentes exigências históricas, pode ser expressa pelos versos do samba de um compositor baiano morto há poucos anos, Batatinha:

 

Ninguém sabe quem sou eu,

Também já nem sei quem sou.

 

Mas eu comecei dizendo que este não é um trabalho de gênero — e as inquietações aqui confessadas podem conduzir a este caminho. Voltemos, portanto, ao território da literatura, já amplo o bastante para uma viagem tão curta como a nossa.

Aqui, quero dar notícia da obra da poeta baiana Emília Leitão Guerra, situando a mesma no quadro literário da época em que a sua poesia se tona mais expressiva — os últimos anos do século XIX.

Foi Lélis Piedade quem publicou os primeiros versos da poetisa no Jornal de Notícias, de Salvador, e no periódico O Propulsor, de Feira de Santana, registrando uma fase marcada pela transição da adolescência. A passagem do século XIX para o XX marca também a maturidade poética da autora que produz em 1899 alguns dos seus melhores poemas.

Emília casou-se em 1907 com o médico Adolfo Santos Guerra que, dois anos depois, tomaria a iniciativa de fazer publicar o primeiro livro da esposa, Lírios da Juventude. [1] A obra foi saudada em artigo do poeta Ubaldo Osório Duque Estrada, no Correio da Manhã, conforme informação do escritor Guido Guerra, neto da autora.

O segundo livro, Evocações, foi publicado cinquenta anos depois do casamento de Emília, reunindo os poemas dedicados ao marido, em edição organizada, em 1957, pela professora Júlia Amélia Viana Leitão, sobrinha da poeta. Em 1964 sairia a segunda edição deste livro, com o selo da Imprensa Oficial do Estado da Bahia e introdução de Jorge Faria Góes. Já idosa e adoentada, Emília Leitão Guerra não compareceu a este lançamento, encarregando um dos seus filhos, o desembargador Adolfo Leitão Guerra, a autografar os exemplares. 

Em 1999, Lizir Arcanjo incluiu Emília no volume intitulado Mulheres escritoras na Bahia: as poetas [2] e neste ano de 2000, Guido Guerra organizou e publicou o volume Poemas Escolhidos, com ilustrações de Floriano Teixeira.[3]

A autora morreu aos oitenta e três anos, no dia 23 de novembro de 1966, deixando, além dos livros publicados, vários poemas dispersos nos arquivos da família.

 

*     *     *

 

O cruzamento de tendências, estéticas, avanços e recuos — cruzamento que caracteriza momentos finisseculares — juntou, desde as duas últimas décadas do século passado, às vezes sob um mesmo rótulo, escritores de natureza diversa. Românticos tardios, parnasianos, naturalistas e simbolistas integravam publicações identificadas pelo simbolismo.

Este quadro múltiplo se delineia na Literatura Brasileira desde o início da década de oitenta até 1888, quando as idéias do simbolismo francês passam a ser amplamente debatidas pelos nossos escritores. Nesse ano foram publicados dois livros que servem de marco renovador da estética romântico-parnasiano-simbolista até então vigente: O Ateneu, de Raul Pompéia, e Músicas, de Emiliano Perneta. Convém lembrar a recepção da crítica de Araripe Júnior ao livro de Pompéia, afirmando que o nosso escritor compartilhava os dogmas e mistérios da visão órfica de Mallarmé. [4] Embora os historiadores da literatura elejam o ano de 1893, quando Cruz e Souza publica Broquéis, como data inicial do Simbolismo, não se pode esquecer todo um conjunto anterior de fatos e acontecimentos, envolvendo o impressionismo de Raul Pompéia e as possíveis identificações do livro Músicas, de Emiliano Perneta, com a novidades europeias. O espírito moderno instaurado pelos simbolistas franceses se faz sentir neste processo de transição da nossa literatura.

Na Bahia, a caminhada foi mais lenta. A lírica avassaladora de Castro Alves prolongou a duração da poesia romântica por muitos anos. Embora Francisco Mangabeira, um pioneiro do Simbolismo na Bahia, tenha publicado Hostiário em 1898 e Tragédia Épica em 1900, o movimento simbolista só se caracteriza na Bahia como fato cultural a partir de 1901, com a publicação da revista Nova Cruzada. É, portanto, no início do século XX, período identificado como uma Belle Époque artística, que o Simbolismo é assumido pelos poetas baianos.

Como então situar a poesia de Emília Leitão Guerra? Parnasiana, simbolista, ou apenas neo-romântica? Os autores desse momento foram caracterizados menos pela natureza do seu texto poético e mais pelos critérios do “Clube do Bolinha”, isto é, pela frequência do autor aos bares e cafés da tertúlia ou pelos laços de camaradagem varonil com os grupos e revistas literárias.

Se na França, de onde nos veio o modelo, o Simbolismo foi um marco de modernidade literária, ou uma espécie de saída estética para o pensamento decadentista; no Brasil, o Simbolismo pode ser compreendido como um rótulo para diversas tendências pós-românticas. Em cada estado brasileiro, uma publicação ou um grupo enfeixava sua produção sob o guarda-chuva desta escola, mais ligada à estética literária do que às transformações culturais e históricas. Adquirindo contornos tão sutis, a designação passaria a ser atribuída com imprecisão genérica.

Os sonetos e outras formas adotadas por Emília Leitão Guerra testemunham a conveniência de permitir a novos leitores o conhecimento de uma autora cujo universo poético ultrapassa as lembranças familiares e o painel de estudos da mulher para se inscrever no vasto e heterogêneo panorama da poesia baiana de inspiração romântico-parnasiano-simbolista.

A autora começa a escrever e publicar num momento em que a modernidade literária contagiava a uns e a tradição saudosista imunizava a maioria. São seus contemporâneos poetas simbolistas como Pethion de Vilar (1870-1924, pseudônimo literário do professor Egas Moniz Barreto de Aragão, da Faculdade de Medicina da Bahia, mais médico e menos artista), Artur de Sales (1879-1952, o cada vez mais estudado artífice do verso), Francisco Mangabeira (1879-1904, poeta pouco conhecido, apesar de respeitado pela crítica simbolista), Durval de Morais (1882-1948, vindo de Maragogipe com sua poesia cristã, chegou a ser aclamado “o maior poeta da Bahia”) e Pedro Kilkerry (1885-1917, talvez o mais aberto à identificação do Simbolismo com a modernidade), para citar apenas os nomes masculinos de maior envergadura.

As mulheres – ou melhor dito: as senhoras – não tinham lugar nas chamadas lides literárias. Mesmo as mais envolvidas com as letras e as artes encontravam espaço tão somente quando reconhecidas como “paladinas do lar”, expressão que, mesmo soando irônica aos ouvidos de hoje, pode ser tomada como epíteto ou caracterização do papel imposto à mulher até a primeira metade do século XX. Acredita-se que o fato da revista feminina A Paladina, fundada por Amélia Rodrigues em 1910, ter ganho no título um complemento que vale como qualificativo, restritivo – passando a ser denominada A Paladina do Lar, em 1912, quando Amélia deixou o grupo –, é uma enfática expressão desse lugar, periférico e subalterno, então reservado à mulher nas letras e nas artes. [5]

Enquanto os homens aderiam ou se opunham às publicações que representavam tendências literárias em voga, marcando uma hipotética filiação artística, a criação literária das mulheres ficava à margem deste processo de inserção intelectual, reservado aos varões. Observe-se que na Bahia, até a segunda metade do século XX, as vozes femininas não se faziam ouvir, mesmo nos mais ruidosos momentos de afirmação de tendências estéticas e sociais. É o caso de Jacinta Passos, poeta e ativista política, que morreu envolvida no mais estranho silêncio, nos anos tumultuosos de resistência ao golpe americanista de 64.[6]

Poemas, contos ou romances escritos por mulheres pairavam no limbo de uma categoria alheia às tendências sociais da arte, ficando restritos aos arquivos e às relações familiares. 

Legados aos arquivos da família são os muitos poemas de amor, implícita ou explicitamente dedicados por Emília Leitão Guerra ao marido. Vejamos o soneto “Por que duvidas?”:

 

Fizeste mal em duvidar. Acaso

Desconhecias meu afeto ardente?

Não sabes, dize, que, por ti somente,

Do amor nas chamas divinais me abraso?

 

A minha ternura não conhece ocaso;

A tua imagem guarda reverente.

Assim, um belo, um precioso vaso,

Guarda os caros perfumes do Oriente.

 

Como é pequena a tua confiança!

E eu que sempre a julguei serena e forte

Qual a que tenho em ti; Pois bem; descansa!

 

– Enquanto eu viva, meu amor não finda;

Acabará, quando vier a morte,

Se, após a morte, não se amar ainda.

 

Após a leitura de sonetos como este, presentes na obra da autora, não se pode deixar de ressaltar o ânimo ou o acendimento amoroso de uma voz que não se deixa sufocar de todo, em meio às exigências e convenções sociais predominantes. A placidez e a força de caráter, que transbordam de modo harmônico e bem resolvido nesta voz feminina, sugerem uma maturidade capaz de solucionar conflitos antigos e sempre atuais. Num momento em que a mulher continuava sendo identificada como o sexo frágil, por isso mesmo devedora de obediência e submissão ao marido; força, determinação e placidez fazem-se presentes na expressão poética de Emília Leitão Guerra, pondo em xeque crenças estabelecidas ou impostas.

Um outro soneto, de 1899, retoma um lugar comum: a contensão ou o recalque do desejo pela mulher. A máscara da indiferença responde às exigências sociais. Vejamos o texto:

 

Ela é de gelo, a multidão dizia,

Vendo o seu modo calmo e retraído

“Não lhe notais, no riso indefinido,

Alguma coisa horrivelmente fria?

 

Até o próprio sol, se ousasse um dia

Beijar-lhe o branco talhe do vestido,

Em montanha de neve convertido,

O azul do espaço, em breve, deixaria.”

 

Depois de algumas sugestões de gosto romântico, o último terceto do poema conclui com a indefectível chave de fechar sonetos:

 

Adivinhei que o gelo era aparente,
Que sob a neve, palpitava ardente
A lava incandescente de um vulcão. 

O aproveitamento de experiências e conquistas formais do Parnasianismo — submetendo as caturrices da forma aos caprichos da expressão, exaltada pelo espírito neo-romântico e conduzida pela sutileza de imagens e símbolos — identifica a poesia de Emília Leitão Guerra com a produção de outros poetas que, no momento aqui discutido, souberam aliar a sensibilidade pessoal ao discurso das emoções interpessoais que aproximam e unem os indivíduos no espaço da poesia.



 

[1] Impresso na Typographia Brasil, em Juiz de Fora, com prefácio do advogado e deputado federal Carlos Arthur da Silva Leitão, irmão da poetisa. Segundo Guido Guerra, este irmão foi o responsável pela formação cultural da autora, inclusive no aprendizado de línguas estrangeiras como alemão, francês e inglês, que estão na base das suas leituras.

[2] Ver o livro Mulheres escritoras: as poetas; antologia com organização e introdução de Lizir Arcanjo. Salvador, Étera, 1999, 294 p. ilustradas com fotos e fac-símiles de publicações. O volume resulta de paciente e trabalhosa pesquisa da organizadora em arquivos e bibliotecas da Bahia, de Pernambuco, e do Rio de Janeiro, revelando algumas autoras inteiramente esquecidas e encontradas nas páginas de desconhecidos periódicos publicados no século passado no interior baiano.

[3] Emília Leitão Guerra. Poemas escolhidos; organização e seleção de Guido Guerra; introdução de Cid Seixas. Salvador, Editora Cidade da Bahia, 2000.

[4] Araripe Júnior. Obra Crítica. 5 volumes. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1958-1970, p. 136, vol. III.

[5] Para melhor conhecer o episódio ver a dissertação de mestrado de Aline Paim de Oliveira: A Paladina do Lar; escrita feminina baiana (1910-1917), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1999; resultante de pesquisa sob a orientação de Ívia Alves.

[6] Luciano Passos, sobrinho da poeta e também escritor, tentou, até poucos anos atrás quando morreu, trazer o nome de Jacinta Passos para o leitor culto. Há cerca de dez anos, o mesmo Luciano Passos incentivou Dalila Machado a escrever uma monografia sobre a obra de Jacinta.


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