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AUTORIA
FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA
Cid Seixas
QUESTÕES DE GÊNERO – Se quisermos
compreender as questões de gênero como assunto inerente aos estudos da
literatura – e não como questão cultural específica e autônoma, o que se constitui
uma realidade – convém observarmos a gênese e as transformações da Voz Feminina
no discurso literário. Como se sabe, a mulher, ou a voz feminina, comparece
inicialmente nas manifestações artísticas como ficção masculina.
Na literatura de
língua vernácula, o marco inicial dessa presença é atribuído às cantigas de
amigo. Quando os trovadores recriam os cânticos de habib das
mulheres de língua moçárabe estão iniciando a imputação de voz à mulher na arte
literária e musical da Idade Média Ibérica.
No caso nascente da
cultura brasileira, mesmo quando José de Alencar, com seu projeto de “invenção
do Brasil” (feliz título de um estudo sobre o tema), projeto este que contempla
deste a identidade nacional, através dos seus fundadores, até as abordagens psicológicas,
econômico-sociais e de gênero. Embora possa parecer demasiadamente elástica a
caracterização, como questão de gênero, de romances como Senhora, é
na caracterização da personagem Aurélia que o lugar da mulher se instaura de
forma epifânica na literatura brasileira.
Quando à ótica
masculina traçava ou projetava a imagem da mulher como muito próxima da imagem
da criança, Aurélia ganha voz como a responsável pela construção do universo em
que vive. Pode-se chamar a isso de uma romântica caracterização da voz
feminina, ou como uma romântica ficção masculina. Mas algo de novo surgia no
discurso literário brasileiro.
Os estudiosos da
questão de gênero, certamente, voltarão ao bordão segundo o qual é uma
perspectiva ou um olhar masculino que aí se instaura. Mas, rigorosamente, mesmo
quando as mulheres começam a fazer literatura, o olhar masculino continua
vigente, porque este olhar era o único presente no cânone literário. Como a
literatura sempre se fez através da reconstrução ou da desmontagem dos modelos
anteriores, o cânone é o esqueleto e o fantasma falante de tudo que vem a
constituir a tradição e a ruptura.
DUAS AUTORAS MIGRANTES DO NORDESTE – Quando, em meio aos
ásperos e viris brados de romance de 30, uma menina de 17 anos escreveu o
romance O Quinze, a crítica ficou atordoada por não conseguir
encontrar aí a voz feminina imaginada pela cultura patriarcal vigente.
A princípio, as
mulheres procuravam escrever os como homens escreviam, inserindo
assim o seu discurso no berço do cânone macho. A especificidade da
fala feminina teria que se fazer presente de forma sutil, dissimulada e quase
escondida, como sutis são as armas usadas pelas mulheres, mesmo, nas mais
acirradas batalhas.
Cecília Meireles,
voz feminina de grandeza marcante no modernismo brasileiro, ao lavrar a
escritura da sua poética, proclama e declara:
“Canto porque o
instante existe
e a minha vida está
completa.
Não sou alegre nem
sou triste
Sou poeta”.
O diálogo
intertextual evidente com Fernando Pessoa, mestre da despersonalização, permite
a Cecília inserir a lírica não mais na primeira pessoa, mas na terceira, na
mesma voz do discurso épico.
Nesse diapasão, a
fala feminina pronunciada por um homem ou a fala masculina proferida por uma
mulher se impõe como dialogismo e como polifonia da ficção que é a poesia.
Clarice Lispector é
vista pela crítica como uma das grandes vozes do século XX a plasmar por
primeiro a água viva das experiências da mulher. Aí, já estamos diante de uma
autora que atira suas setas de forma mais certeira. Mas mesmo nessa voz,
marcadamente feminina, a questão inicialmente posta, isso é, que o cânone –
masculino como o artigo que o rege – fala pela boca da autora.
Clarice não se esforça
para “fazer gênero” ou, dito de outro modo, não há no discurso literário da
autora a intenção flagrante de marcar o seu texto. Trata-se de uma voz da
mulher naturalmente forjada pela vivência cotidiana e não de uma voz literária
que quer escrever como mulher para expressar sua condição feminina. Se na
contemporaneidade as preocupações da crítica com as questões de gênero
propiciam a representação ou a mimese da voz feminina, na modernidade a voz da
mulher se fazia ouvir em “estado de inocência primordial”, isto é, da forma
inaugural. A escrita se fazia feminina quando emanava de um ser profundo
marcado por vivencias que só uma mulher poderia ter.
É
essa duplicidade
antagônica marcada pela construção de uma narradora
testemunhalmente feminina
que a distingue de uma narradora ficcionalmente feminina. Com a
distinção aqui
ensaiada não se pretende, com a expressão
“testemunhalmente feminina”, conferir
a esse tipo de discurso o mesmo caráter da chamada literatura de
testemunho.
Pretende-se tão somente sublinhar que, embora sem uma deliberada
intenção de
“fazer gênero”, a condição testemunhal
de mulher précondiciona a percepção do
mundo e torna sua construção estética da realidade
impregnada de traços e
sugestões que somente uma subjetividade semelhante poderia
produzir.
Aí a diferença
abismal entre um narrador como o do romance Senhora, de Jose de
Alencar, e um narrador masculino construído por Clarice Lispector em A
hora da estrela. Mesmo se materializando em corpo de homem para contar uma
história, o narrador de Clarice Lispector é mais feminino que o narrador dos
bem realizados poemas musicais de Chico Buarque. A camada epidérmica de ambos
os discursos poderiam até se igualar, mas a camada profunda, as imagens
reveladas do palimpsesto aos poucos, restaurado; isso reconstitui uma outra
realidade psíquica. As mulheres que falam nos poemas musicais de Chico, mesmo
construídas a partir de uma sensibilidade e de uma argúcia exemplares, são na
sua estrutura psíquica menos femininas do que o narrador masculino do romance
de Clarice Lispector.
Daí a tentativa de
explicar o fato com a expressão “narradora testemunhalmente feminina”. Com isso
também não se quer dizer que o que foi chamado de “narradora ficcionalmente
feminina” seria menos representativo de sentimento de mundo da mulher.
NO TABULEIRA DA (ESCRITURA) BAIANA – Para aprofundarmos
a discussão a partir de obras e autoras brasileiras, já que foram tornadas como
objeto de análise escritoras procedentes de vários estados, como Raquel de
Queiroz, do Ceará, Clarice Lispector, educada no Pernambuco, continuemos no
Nordeste, arrolando autoras baianas, duas delas desterritorializadas: Sonia
Coutinho e Helena Parente Cunha. Ambas passaram a viver na antiga capital da
república e fizeram do Rio de Janeiro o cenário das suas ficções. Como Sonia
Coutinho e Helena Parente Cunha, escritoras baianas já definitivamente
incorporadas à história da literatura brasileira e não da literatura regional,
uma terceira, Myriam Fraga, mesmo vivendo na Bahia já obteve uma
audiência nacional.
Se estes três nomes
estão incluídos no repertorio da critica brasileira, alguns outros, de atuação
local, constituem o acervo baiano de vozes que legitimamente deflagram e
enriquecem o debate sobre as questões de gênero.
Uma pioneira é a
escritora Amélia Rodrigues, nascida em Santo Amaro e que hoje dá nome a um
município que faz fronteira com sua cidade de origem e com Feira de Santana, lugar
de onde agora se fala. Amélia Rodrigues, não obstante a carga semântica
atribuída ao antropônimo Amélia, pela canção de ideologia antagônica, é hoje
arrolada em discussão sobre a mudança de percepção sobre o universo feminino.
“Nunca vi fazer
tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai meu Deus que saudade da Amélia
Aquilo sim que era mulher
As vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado dizia
Meu filho o que se há de fazer
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia que era a mulher de verdade”
(ALVES
& LAGO, 2003)
Mas deixemos a
Amélia plasmada por Athaulfo Alves e Mário Lago e voltemos à escritora Améria
Rodrigues. Educada para a vida do lar, esta mulher de educação considerada
avançada para os padrões dos fins do século XIX e início do século XX, atuou
não só como ficcionista mas como militante da emancipação feminina. Bem verdade
que grande parte do seu trabalho se deu em torno de entidades e espaços ligados
à Igreja; mas que outros territórios poderiam acolher uma mulher de família
tradicional no interior da Bahia?
Ironicamente
(conforme a percepção atual), uma revista na qual ela atuou, abrindo espaço
para outras mulheres, foi batizada como As Paladinas do Lar. Essa
publicação já foi objeto de estudos de gênero, incluindo teses de doutorado e
dissertações de mestrado orientadas pela professora Ivia Alves, na Universidade
Federal da Bahia.
Outra pioneira na
Bahia foi a escritora Edith Gama Abreu, a primeira mulher a integrar a Academia
Baiana de Letras, nas falocêntricas décadas iniciais do século passado, durante
os anos que procederam a afirmação da geração modernista de 1928.
Mesmo integrando o
quadro de escritores responsáveis pela manutenção da tradição literária mais
fechada aos rumores da modernidade tardia, ela teve que enfrentar a resistência
dos seus pares pela condição de mulher. Ao se intrometer em “coisas de homens”.
Uma resposta, indireta e não intencional, a esta mentalidade seria dada mais
tarde pela voz poética de Myriam Fraga. Mas, por enquanto vejamos como a
indignação masculina se manifestou, através de um “gênero” poético muito em
voga na Bahia da primeira metade do século XX, o epigrama. Lacônico e certeiro,
Silvio Valente poetou:
“Edith, escreva
mas, por favor,
não edite.”
Desde aí, palavra
de mulher passou a ser como “uma pedra no meio do caminho”, tão incômoda quanto
as palavras novas do modernismo.
Myriam Fraga,
embora de uma geração mais nova, publica pela primeira vez ao lado de dois
pontas-de-lança da geração de Arco & Flexa, revista
nordestina dos anos 20, Godofredo Filho e Carvalho Filho, e de dois
contemporâneos seus, Florisvaldo Matos e Fernando Peres. Os primeiros poemas da
autora ainda não conferiam a ela um lugar privilegiado pela dicção nitidamente
feminina. O livro Sesmarias, que no encaminhamento temática pode
ser comparado a épicos modernos, como Mensagem, de Pessoa, ou Romanceiro
da Inconfidência, de Cecília Meireles, é uma captura de vozes históricas em
torno da Cidade da Bahia e do feudo de Garcia D’Ávila. O mesmo tom constituiu
outros livros da sua autoria, como A Cidade. Somente nos anos
finais do século passado Myriam Fraga elegeu, de modo eloqüente, os temas e os
sentimentos femininos. No território da prosa biográfica ela realiza um
substancial estudo sobre a vida de Leonídia Fraga, uma das primeiras musas do
poeta Castro Alves. No seu próprio território, o da poesia, Myriam alcança o
ponto talvez mais alto de sua criação como o livro Femina. Ainda
através de viagens pelos tempos idos da história e da voz lírica contaminada
pela ética, ela prossegue a encenação de dramas e conflitos de mulheres. O
nítido processo de despersonalização ou de ficcionalização do eu lírico
assegura ao livro um lugar privilegiado no quadro da poesia brasileira do nosso
tempo.
Síntese de vozes e
pensamentos, um verso seu, citado de memória, exprime a questão prosaicamente
discutida: “poesia é coisa de mulheres.”
Que verso pode ser
tomado para responder não só as vozes ressentidas do passado, contra a
conquista de espaços pelas mulheres, mas à sensibilidade que é a pedra
fundamental da poesia?
Outra autora que
aprofundou cada vez mais a natureza essencialmente feminina da sua escrita é
Helena Parente Cunha. Com o passar do tempo, apenas o sentimento profundo do eu
feminino é exposto e posto a nu, mas a escolha de temas e personagens femininos
passam a ser uma obsessão nos seus romances, poemas e contos.
O livro Cem
mentiras e verdades, constituído por narrativas curtíssimas, e
provavelmente o ponto mais denso da sua ficção, tem o mérito de representar ou,
antes, sugerir, um painel psicológico dos conflitos da mulher.
Dois minicontos,
“Tesão” e “Um e outra”, podem ser tomados aqui como expressão das angústias da
mulher. No primeiro, uma cinquentona imagina cenas eróticas com cada homem que
passa na rua, mas ao de deparar sozinha, no elevador, com o vizinho, treme de suores
e febres, para recolhida ao quarto de virgem prolongar seus temores.
(Texto inédito, escrito como prova de
concurso público para Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de
Santana, ao qual o autor se submeteu em dezembro de 2010, tendo sido aprovado
em primeiro lugar.)
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